quinta-feira, 15 de outubro de 2009

D. Ouroana Pais Correia e sua família

Em 27/10/00, fomos à Aguçadoura falar sobre D. Ouroana Pais Correia e um seu ilustríssimo meio sobrinho, de nome D. Paio Peres Correia. Isso obrigou-nos a aprofundar e rever o que sabíamos sobre o assunto e que há dez anos tínhamos exposto num pequeno artigo que intitulámos «Correias de Fralães em Navais, Aguçadoura e Balasar, no século XIII».
Desta vez vamos ocupar-nos apenas de D. Ouroana e de alguns familiares mais chegados, pais e irmãos.

No Nobiliário do Conde D. Pedro

Vejamos o que sobre a família de D. Ouroana se escreve no Nobiliário do Conde D. Pedro. Comecemos pela sua mãe, D. Gontinha Godins:

De dona Gontinha Godins filha de dom Godinho Fafez e de dona Gontinha Meendez filha de dom Mem Nuniz de rriba de Doyro:
Esta dona Gontinha Godiins foy casada com dom Paay Soarez Correa o velho, e fez em ella dona Ouroana Paaez Correa e dona Samcha Paaez Correa como se mostra no titullo XXXI do dona Ouroana Meendez parrafo pri­meiro: e dêsque morreo esta dona Gontinha Godiins casou este dom Paay Soarez Correa com dona Maria Gomez da Silva irmãa de dom Martim Gomez e de dom Paay Gomez da Sillua, e fez em ella Pero Paaez Correa e dona Maria Paaez d’Oufeãaes que ouuerom somel como adeante ouuirees no titullo dos Correãaos.

Agora uma segunda citação, que vai repetir parte da anterior, mas que apesar de tudo adianta a informação:

E dona Maria Gomez da Sillua irmã da dita dona Orraca Gomez e filha dos sobreditos foi casada com Paay Soarez Correa o velho, e fez em ella Pero Paaez Correa e dona Maria Paaez de Foaanes: e este Paay Soarez Correa fora ante casado com dona Gontinha Godiins, filha de dom Godinho Fafez o velho e de dona Gontinha Mendez filha de dom Meem Nuniz de rriba de Doyro, e fez em ella dona Sancha Paaez e dona Ouroana Paaez Correa que forom casadas e ouuerom semel como já dissémos.
Este Pero Paaez Correa sobredito filho de Paay Soarez e de dona Maria Gomez da Sillua sua segumda molhor foy casado com dona Dordia Paaez filha de dom Pero Meemdez d’Aguiar e de dona Esteuainha Meemdez de Gumdar, e fez em ella meestre dom Paay Correa, e Joham Correa, e Martim Correa, e Sueiro Correa, e Gomez Correa, e outro Paay Correa que foy Aluarazento, e dona Moor Pirez Correa, e dona Samcha Pirez Correa.

Em síntese, ficamos a saber que D. Ouroana Pais Correia era filha de D. Gontinha Godins e D. Paio Soares Correia. Este casal teve outra filha, D. Sancha Pais. Falecida D. Gontinha Godins, D. Paio Soares Correia casou de novo, agora com D. Maria Gomes da Silva (que devia ser muito jovem, pois ainda fará, também ela, um segundo casamento). O casal vai ter outros dois filhos, D. Pêro Pais Correia e D. Maria Pais de Fiães. O resto da citação refere o casamento e os filhos de D. Pêro Pais Correia.

Nas Inquirições

Verifiquemos agora como muito do que aqui se escreveu vem confirmado nas inquirições de D. Afonso II e D. Afonso III, na parte relativa a Nabais. Comecemos pelas de 1258:

Item, disse que Paio Correia comprou aí um casal, do qual davam a El-Rei a sexta em ração, e não tinha aí qualquer avoenga nem entrada, e à sua morte deu-o ao Mosteiro da Várzea e do mesmo casal fizeram dois de novo.

Item, D. Ouroana, sua filha, fez três casais aí na Pedra Aguçadoira, que é termo de Nabais, e não dão daí nada a El-Rei.[1]

Isto eram factos velhos: D. Paio Correia, pai de D. Ouroana, já tinha morrido antes de 1220; nesta data já a sua antiga propriedade passara para o Mosteiro da Várzea. Também D. Ouroana Pais, sua filha, teria morrido ou seria idosa.
D. Paio Correia seria da geração de Sancho I. Um neto seu, D. Paio Correia também, em 1258, estaria já entre os cinquenta e os sessenta anos.
Mas a presença de D. Ouroana fora assinalada por estas paragens décadas antes, nas inquirições de 1220. Veja-se:

E em Eirós apropriou-se D. Ouroana Pais duma herdade reguenga, que é do termo de Nabais, e fez dela forra.[2]

D. Ouroana ostenta o apelido de Pais, que quer dizer filha de Paio, D. Paio Correia. E também por aí andava o seu marido, D. Pedro Gravel de seu nome (o texto diz Gavel, mas outro manuscrito corrige para Gravel):

E da herdade de Paio Godins davam seis côvados de bragal por fossadeira, e comprou-a D. Pedro Gavel, e agora não dão nada.[3]

D. Ouroana e o marido assinalam-se em S. Salvador de Silveiros, depois anexada a S. João de Silveiros, junto a Monte de Fralães, onde ficava o solar da família. Escreve-se lá, por exemplo, em 1258, que o abade disse que «Pedro Gravel, com a sua esposa D. Ouroana, comprou as herdades dos Madinos...»[4]
Ensina o Monsenhor Manuel Amorim que esta D. Ouroana foi importante povoadora da actual Aguçadoura.
A esposa de D. Paio Correia, mãe de D. Ouroana, já o vimos, chamava-se Gontinha Godins. Ora em Nabais aparecem Godins. Quem sabe se não foi pela via de interesses económicos herdados que os Correias cá apareceram. Porque eles não eram daqui. Dizem as inquirições que eles compraram, compraram bastante, mas podiam ser donos de muito mais...
D. Gontinha Godins ocorre também em Viatodos, numa frase justamente célebre:

No casal que foi de D. Gontinha criaram recentemente uma filha de João de Guilhade.[5]

[1] Item, dixit quod Pelagius Corrigia comparavit ibi unum casale, de quo dabant Domino Regi sextam in ratione et non habebat ibi aliquam avolengam neque intratam, et ad mortem suam dedit illud monasterio de Varzena et de ipso casale fece­runt duo de novo.
Item, Domna Ouroana, filia sua, fecit tria casalia ibi in Petra Aguzadoira que est in termino de Nabaes et non dant inde aliquid Domino Regi.
[2] Et in Eiroos filiavit domna Ouroana Pelagiz quandam heredi­tatem regalengam, que est de termino de Nabaes, et fecit de illa ingenuam.
[3] Et de hereditate de Pelagio Godiiz dabant vj. cubitos de bracali pro fossadeira, et comparavit illam domnus Petrus Gavel, et modo nichil dant inde.
No Nobiliário do Conde D. Pedro, escreve-se sobre Pedro Gravel:
Este dom Pero Pirez Grauel foy casado com dona Ouroana Paaez Correa, e fez em ella semel como já dissémos.
[4] Item dixit quod Petrus Gravel cum uxore sua Domna Ouroana comparavit hereditates dos Madinos...
[5] Item, dixit quod in Britelus, in casali que fuit Domne Guntine, nutriverunt modo filiam johannis de Guiladi.

A irmã e os meios-irmãos de D. Ouroana

As citações do Nobiliário do Conde D. Pedro já nos informaram sobre a família de D. Ouroana. Vejamos agora a memória que as inquirições conservam de sua irmã e de seus dois meios-irmãos.
Em Santa Marinha de Vicente, anexada depois a Gondifelos, e que em 1258 era «Honra dos Correias», surge o nome da irmã D. Sancha e seu marido:

E de outra quintã que aí existe davam de fossadeira um bragal; e comprou nela D. Sancha Pais a sétima parte de duas quintas, e tira o correspondente dessa fossadeira. E nestas duas quintãs davam voz e coima, e agora não dão por causa dos filhos de Reimão Peres.[1]

D. Sancha Pais é certamente a irmã de D. Ourona Pais Correia; Reimão Peres é o marido.
Mas nessa Honra dos Correias havia mais familiares, pois é aí que ficam os lugares de Fiães e Ofiães das citações do Nobiliário, onde viveu D. Maria Pais Correia, de Fiães; mencionam-se também os seus filhos, os cavaleiros Rui Vasques Quaresma e Martinho Vasques.
O meio-irmão de D. Ouroana, D. Pêro Pais Correia, surge em Balasar, onde protagoniza um amádigo. A «Vila do Casal» «toda está honrada por meio de D. Pêro Pais Correia, que aí foi criado», dizem as Inquirições.

[1] Et de alia quintana que ibi est dabant de fos­sadeira j. bracale; et comparavit inde domna Sancia Pelagiz septimam de duabus quintis, et tollit tantum de ipsa fossaderia. Et in istis duabus quintanis pecta­bant vocem et calumpniam, et modo non pectant pro­pter filios de Reimondo Petriz.

Duas Ouroanas

Nas inquirições de 1220, imediatamente antes de se falar sobre Nabais, vêm os textos sobre Remelhe. Ora aí em Remelhe menciona-se uma D. Ouroana, que é «ama da Rainha D. Mafalda».
Esta «rainha D. Mafalda», filha de D. Sancho I, casou muito jovem com o rei de Castela, igualmente jovem, que em breve morreu. Regressada a Portugal, usou sempre o título de rainha. Devido à exemplaridade da sua vida, foi beatificada em finais do século XVIII, sendo irmã das também beatas Sancha e Teresa.
Pensamos que entre esta D. Ouroana e a D. Ouroana Pais Correia não há nada de comum, além do nome e de serem contemporâneas. Cremos pois que são duas mulheres diferentes.
A «ama da rainha D. Mafalda» chamava-se D. Ouroana Peres e foi casada com Gonçalo Peres e teve um irmão de nome Pedro Peres, como vem num documento do Mosteiro de Arouca, datado de 1223, que começa assim:

Em nome de Deus. Seja manifesto tanto aos presentes como aos vindouros que eu D. Garcia Sanches, mestre da milícia de Pereiro e Alcântara, com todo o nosso convento, faço carta de doação e perpétua firmeza a vós, D. Ouroana Peres, ama da rainha D. Mafalda, e a vossos descendentes, de toda a sua herdade que o nosso irmão Pedro Peres, vosso irmão, teve de seu património, onde quer que a possais encontrar.[1]

De resto, na tese que Maria Helena da Cruz Coelho dedicou ao Mosteiro de Arouca, nunca se menciona D. Ouroana Pais Correia, apesar de lá falar repetidamente de D. Ouroana Peres e citar documentos que atestam propriedades suas em Remelhe.

[1] In Dei nomine. Tam presentibus quam futuris sit manifestum quod ego domnus Garsias Sancii Calatrauensis milicie Perarii et Alcantare magister una cum conuentu nostro uobis domne Ouroane Petri nutrici regine domne Maphalde et uestre progeniei facio kartam donacionis et perpetue firmitudinis de tota sua hereditate quam frater noster Petrus Petri uester frater habuit de suo patrimonio per ubicumque poteritis illam inuenire.

Pedra Aguçadoira

Em 1258, na freguesia de Nabais, havia o lugar da Pedra Aguçadoira – Pedra Aguçadoira e não «Petra Aguzadoira», porque isto é uma forma latinizada da anterior e o z lia-se como sibilante, com o valor de um ç ou um s em posição inicial de palavra.
Que pedra seria esta que deu nome ao lugar? Destinar-se-ia a afiar alfaias domésticas ou agrícolas? Ou teria sido antes de uso religioso, para afiar, por exemplo, o cutelo do sacrificador das vítimas imoladas às divindades celtas ou romanas? Não sabemos. Mas sabemos que são conhecidas pedras com desgaste reentrante originado deste uso religioso. Estas eram pedras de uso sagrado e certamente «aguçadoiras».